terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Vingança

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Costumava, quando piá, ir seguido para Porto Alegre, visitar parte da família, saíamos, geralmente meus pais, minha irmã e eu, Sexta já pela tardinha, após o "último paciente". A mãe, deixava as coisas prontas no carro após o almoço - roupas, travesseiro, coberta - deixando apenas as "coisas de padaria" para a saída, estas, iam nos pés, graças ao "sempre pequeno" porta-malas. Após as visitas - avós, tios, laboratórios, e/ou algum evento em especial - voltávamos Domingo, também a tardinha, para não pegar a noite, objetivo esse, dificilmente alcançado.
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Como se fosse ontem, a recordação de uma das raras vezes em que retornamos ainda dia me vem a mente. Chagamos em Três Cachoeiras por volta das 16 ou 17 horas. O auto ainda subia a pequena rampa da garagem, ao som do peculiar acoado com que o Spock sempre nos recepcionava, quando olhei para o lado, e fiquei intrigado com as gaiolas abertas, não eram gaiolas quaisquer, eram "as" gaiolas.
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Criava coelhos, não era um comerciante de carne, apegava-me demais as criaturas para tal atitude, fazia aquilo porque amava. Trocava, comprava, vendia, ganhava, doava, sempre com uma intenção: fomentar. Tinha em mente que isso (o desenvolvimento da atividade) traria enormes benefícios, com ênfase no aprimoramento genético. E tive êxito, era um piá de 11 anos, que tinha em casa os maiores coelhos da região, mesmo, todos sendo híbridos.
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Saltei então do carro, corri até as gaiolas, justamente as principais estavam vazias. Meu vizinho/amigo, Kiko, era meu "sócio", dividíamos as tarefas da cunicultura, seguidamente soltávamos os coelhos no pátio, mas, logo notei não ser a explicação para tais gaiolas vazias. Potes de barro, nos quais continham ração e água, estavam em pedaços pelo chão e pensei: "Merda, roubaram meus coelhos".
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Pulei o muro e confirmei com o Kiko, naquela noite, de Sábado para Domingo, levaram três fêmeas, a base de tudo o que eu tinha ali, sem elas, só poderia continuar criando começando tudo do zero. Em Três Cachoeiras, a gurizada, tinha o costume de roubar coelhos ou ovelhas para fazer churrasco, maldade pura, perdoável, se analisado do ponto de vista intelectual de tais criaturas, sim, conheço todas elas.
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Mas, ali mesmo, percebi que os culpados não eram os "tradicionais", eu tinha outros setenta e tantos coelhos, enormes e gordos, "perfeitos" para o tal churrasco, estes novos bandidos levaram três animais magros (pois estavam amamentando filhotes de 15 dias), um ato de crueldade, que, de imediato pareceu-me algo muito mais pensado do que meramente "churrasco e cerveja".
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Naquela semana, Segunda ou Terça, dois gurís apareceram lá em casa para comprar minhas coelhas, exatamente as tais que me levaram no final da semana. Tentaram de tudo, me ofereceram muito dinheiro (para tal parâmetro), até outros animais, estavam realmente determinados a leva-las. Resisti, minha intenção não era aquele tipo de comércio, não me levaria a lugar algum, perderia independente do câmbio que fizesse.
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Quando pulei o muro de volta, liguei para meu primo, que morava próximo destes bandidos (aí, já culpados, e não suspeitos), pedi que fosse até suas casas, para pegar as coelhas de volta. Meia hora depois, retorna a ligação, falava-me que o gurí não queria "levantar" e atende-lo, a mãe do filho da puta explicou que o filho passara a noite fora, então, dormia o dia inteiro. Meus pais não me levaram até lá, pois apontavam não ser correto (temiam por minha segurança), fiquei puto. Pouco depois meu primo volta a ligar, dizendo ter retornado ao local, questionando sobre três gaiolas vazias, teve a resposta de que seriam para três "novas" coelhas que acabara de "comprar".
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O tempo passou, nada foi feito, mas sempre que isso me vinha em mente, pensava que um dia teria minha vingança, mesmo com todos os ensinamentos maternos que tive, de "não rancor". Muitas vezes pensei em dar o troco na mesma moeda, mas nunca cheguei a faze-lo. Um Padre, certa vez, me "orientou" a perdoa-los, pois talvez, tais mentes perturbadas estariam com fome. Depois de esclarece-lo sobre minha aversão a Igreja Católica, meu posicionamento agnóstico sobre questões teístas, e lhe explicar todos os fatos já mencionados (não comeram o que levaram), também desistiu de tentar convencer-me.
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Anos mais tarde, já estava no 2º grau, sempre chegava atrasado alguns minutos na aula, dificilmente pegava o início delas, nem seus fins. De uma feita, entrei literalmente dormindo, e, como já dominava o que estava sendo dito pelo "mentor", continuei dormindo, porém, uma voz estranha chamava-me a atenção passado uns dez minutos. Volto-me para o fundo da sala, e, noto o aluno novo: o Filho da Puta que roubou minhas coelhas. Levanto-me, pego minha caneta e caderno, e volto para casa, pensando o que faria a respeito.
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Fiquei a manhã inteira sentado, olhando para onde ficavam as gaiolas, que depois do roubo deram lugar ao nada, assim até hoje. Tive tantas idéias de como poderia me aproveitar de tal situação para a vingança, que por vezes me pagava sorrindo. Algumas como faze-lo repetir o ano, logo foram descartadas, pois força alguma poderia faze-lo ser aprovado, e como era burro aquele animal, meu desforro seria em vão. Briga também não seria inteligente, ele, um asno de 1,90m, eu, um piá de 1,68m. Então, decidi continuar indo na escola, e esperar o melhor momento, já se passavam cinco anos, alguns dias a mais seriam a sobremesa.
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O interessante é que a partir daí, não me atrasava mais, nem dormia nas aulas, tinha finalmente um objetivo naquilo tudo. Teve uma manhã, caminhávamos (a turma) em direção a quadra de esportes, chutei a bola de futebol encharcada de lodo, acertou em cheio suas costas, a camisa branca ficou como um pano de chão de banheiro de rodoviária, porém, foi um acidente, eu não tinha planejado, assim, nem computei como parte do que faria. E assim passamos os dias, eu sabendo quem ele era, enquanto estava escrito em sua testa algo do tipo "Ele sabe o que fiz pelo jeito que me olha".
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Nada fiz, passou o ano, ele reprovou, o que já era sabido, não voltou no ano seguinte. Volta e meia me pego pensando no assunto. Mas, uma vez, comentando na sala de aula, sobre o roubo (não me recordo como paramos no assunto), olhei bem em seus olhos, e falei sobre minha certeza em quem tinha feito tal crueldade. Portanto, mesmo que eu não saiba o que farei, e, se farei, algo me faz pensar. Algo que possa, talvez, até ser a própria vingança que sempre planejei, pois naquele dia, quando lhe mostrei minha certeza, mesmo não sabendo o desfecho, uma coisa ficou clara em seus olhos: ele sabe.
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2 comentários:

Anônimo disse...

E hoje além "de saber",... ele é o que? Provavelmente o mesmo asno de anos atraz.

Anônimo disse...

o que sempre será.